Privilégio e banalização da violência
- Ana Godoy
- 9 de abr.
- 6 min de leitura
Atualizado: 8 de mai.
A diferença no tratamento de casos de estupro envolvendo pessoas influentes revela a fragilidade das instituições e o desafio de garantir justiça igualitária às vítimas
Ana Godoy, Sessão das 4 - Bauru, São Paulo
Estupro: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso
Esse é um crime que assombra mais de 736 milhões de mulheres ao redor do mundo, segundo dados da ONU. A cultura de poder e misoginia influencia diretamente na forma como os casos de violência sexual são tratados por instituições. Muitas vezes, levam à minimização de denúncias e à impunidade. Por isso, muitas mulheres sofrem com o estupro, mas têm medo de denunciar.
Casos envolvendo pessoas públicas frequentemente recebem um tratamento diferenciado, seja em investigações menos rigorosas, proteção aos acusados ou até mesmo anulação de condenações por falta de provas.
Segundo dados do UNICEF e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), entre os anos de 2021 a 2023, cerca de 164 mil pessoas entre 0 e 19 anos foram vítimas de estupro.
O advogado criminalista Olavo Nogueira revela quais são as principais dificuldades que uma mulher enfrenta ao denunciar um caso de estupro.
O advogado também comenta sobre o fator da jurisprudência e a necessidade de provas.
Medo
O medo de ataques é um dos principais fatores que impactam a decisão de denunciar. As vítimas enfrentam possíveis violências físicas, isolamento social, perda do apoio familiar e problemas no emprego. Essas ameaças geram uma sensação de vulnerabilidade e desencorajamento na hora de denunciar.
Programas de proteção a testemunhas muitas vezes se tornam falhos durante a investigação ou até mesmo após todo o processo judicial, causando um sentimento de vingança no agressor e de fragilidade na vítima.
Para a cientista social Jessica de Cássia Rossi, para reverter a tendência de casos de estupro, é necessário uma mudança profunda na educação e na sensibilização social “Campanhas de conscientização e programas de educação que evidenciem a gravidade da violência sexual e promovam o respeito às diferenças são fundamentais para desconstruir preconceitos. Ao mesmo tempo, políticas públicas que incentivem a denúncia e ofereçam apoio às vítimas podem contribuir para transformar o ambiente cultural, fazendo com que o abuso seja reconhecido e combatido desde sua manipulação mais sutil até a sua manifestação mais explícita.”
Olavo reflete sobre a confiança das vítimas no sistema brasileiro ao denunciar casos de violência contra mulher e afirma que, atualmente, a palavra da mulher prevalece, porém, a justiça ainda é comandada por muitos homens e o machismo ainda pesa na tomada de decisões.
O advogado complementa que as vítimas deveriam receber apoio psicológico e orientações como agir diante de qualquer tipo de ação violenta.
Já a cientista social acredita que “a normalização e a banalização da violência sexual são fenômenos que ocorrem quando comportamentos abusivos são tratados como corriqueiros ou considerados inevitáveis dentro de determinados contextos sociais”.
“Essa postura se reflete tanto nas atitudes cotidianas quanto na linguagem utilizada, em que piadas de teor sexista, comentários depreciativos e minimização do impacto emocional das vítimas se tornam comuns. Tais comportamentos contribuem para uma cultura de tolerância ao abuso, dificultando o reconhecimento dos limites éticos e legais dos atos”, afirma.
Casos envolvendo figuras públicas
Casos de estupro envolvendo pessoas públicas mostram a gravidade da violência sexual, e também, como o poder e a influência podem silenciar vítimas ou até mesmo ajudar abusadores - que sempre negam - seja anulando condenações ou até mesmo demorando anos para ocorrer a condenação.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2022) revelam que cerca de 25% a 30% das denúncias contra indivíduos poderosos recebem uma abordagem branda nas investigações, refletindo a falta de confiança da população nas instituições judiciais.
Olavo Nogueira comenta que pessoas com certa influência não são julgadas da mesma maneira que uma pessoa anônima.
Já a forma como a violência sexual é retratada pela mídia tem um impacto direto na maneira como a sociedade compreende e responde a esse tipo de crime.
Jessica Rossi acredita que “a mídia exerce um papel ambíguo na formação da opinião pública sobre a violência sexual. Por um lado, veículos de comunicação podem chamar a atenção para a gravidade do problema e incentivar a denúncia ao dar visibilidade aos casos. Por outro lado, quando a cobertura adota um caráter sensacionalista, o foco nos detalhes chocantes e na exposição dos envolvidos pode contribuir para a revitimização”.
Escândalo de Berna: Caso Alexi ‘Cuca’ Stival
O ‘Escândalo de Berna’ recebeu esse nome por ter acontecido na cidade de Berna, na Suíça. O ano era 1987, e o então jogador Alexi Stival, mais conhecido como Cuca, se envolveu em um caso de estupro de menor - a menina tinha 13 anos -. Cuca foi detido e ficou preso por cerca de um mês. No entanto, pagou fiança de 15 mil francos suíços e foi liberado para retornar ao Brasil.
O julgamento aconteceu em 1989 sem a presença do condenado. Cuca foi condenado a 15 meses de prisão por atentado ao pudor com uso de violência. Alexi ‘Cuca’ Stival sempre negou a acusação.
Reprodução/ Gabriel Rosa Machado/AGIF

Ele foi julgado à revelia e teve sua condenação anulada. O Judiciário de Berna determinou que Cuca recebesse uma indenização de R$55 mil. Alexi é técnico do Atlético Mineiro.
Para entender mais sobre o caso, a jornalista Natuza Nery fez um episódio do podcast “O Assunto” contando mais sobre O caso Cuca e a violência de gênero no futebol, disponível no YouTube.
Reprodução: Canal UOL
Caso Robinho
O crime aconteceu na boate Sio Cafe em 2013, quando o jogador atuava pelo Milan, da Itália. A vítima é uma mulher da Albânia que, no ano do ocorrido, comemorava 23 anos. Outros brasileiros, amigos de Robinho também foram denunciados.
Reprodução: Metrópoles

A Justiça italiana grampeou uma série de ligações de Robson e seus amigos. Nas gravações, o ex-jogador e os demais envolvidos fazem piadas. Robinho tentou voltar a ser jogador de futebol e foi anunciado pelo Santos em 2020, porém o clube suspendeu o contrato após pressão da mídia, torcedores e patrocinadores.
Reprodução: Canal UOL
Robson de Souza está preso desde março de 2022 no presídio Tremembé 2 - local conhecido como prisão dos famosos - e cumpre uma pena de nove anos por estupro coletivo. Ele não compareceu em nenhuma das audiências.
O podcast ‘O Assunto’ #1.100 Robinho preso e a queda de ídolos do futebol conta mais sobre o caso da boate Sio Cafe.
Caso Daniel Alves
Em 2022, o ex-jogador Daniel Alves permaneceu no banheiro da boate Sutton, em Barcelona, com uma mulher durante 16 minutos. Assim que saiu, ela começou a chorar e foi acolhida por um dos seguranças alegando ter sido estuprada pelo atleta.
O julgamento começou em 2023 e o futebolista negou as acusações. Ele afirma que ouve penetração e sexo oral, mas que foi consensual. Alves, porém, deu ao menos cinco versões diferentes de depoimentos. Daniel Alves foi condenado a 4 anos e seis meses de prisão. E para não cumprir pena em regime fechado, desembolsou cerca de R$ 5,4 milhões. Ele ficou detido no presídio Brians 2 por um pouco mais de um ano.
Reprodução: Estadão

Daniel Alves foi absolvido no dia 28 de março de 2025 da sua condenação por agressão sexual. Ele foi inocentado por decisão unânime do Tribunal de Justiça da Catalunha.
Para entender o caso, Natuza Nery conta os detalhes neste episódio de 'O Assunto'.
Reprodução: Estadão
A persistência de comportamentos abusivos está frequentemente atrelada à sensação de impunidade, que se torna um obstáculo tanto para a responsabilização dos agressores quanto para o encorajamento das vítimas a denunciarem.
“O fenômeno da impunidade não apenas desestimula as vítimas a denunciarem. Reforça a ideia de que o abuso pode continuar sem maiores repercussões. A transformação desse cenário passa pela necessidade de reformas que priorizem uma investigação minuciosa, julgamento imparcial e aplicação uniforme das leis, de modo a enviar uma mensagem clara de que comportamentos abusivos serão, de fato, combatidos e punidos com rigor”, finaliza Jessica.
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