Representatividade ou Estereótipo?
- Mariana d'Abril
- 26 de fev.
- 3 min de leitura
Atualizado: 8 de mai.
Indicação histórica de atriz trans gera debate sobre como o cinema retrata a transgeneridade
Por Mariana d'Abril, Sessão das 4 — Bauru, São Paulo
70% dos casos de assassinato de pessoas trans estão concentrados na América Latina, aponta pesquisa da Trans Murder Monitoring. Com o Brasil e o México no topo do ranking, a representatividade trans latina é um tópico sensível e, como qualquer outra, precisa ser bem expressada. Indicado a treze estatuetas do Oscar e colecionando troféus, o musical ‘Emilia Pérez’ também coleciona polêmicas que têm repercutido nos últimos meses.

A poucos dias da maior premiação do cinema mundial, a indicação da espanhola Karla Sofía Gascón como a primeira mulher trans a concorrer na categoria de ‘Melhor Atriz’ poderia ser um marco histórico positivo. No entanto, a forma como o filme retrata a transgeneridade tem gerado frustração e indignação na comunidade LGBTQIAPN+.
Mesmo após polêmicas, Karla Sofía Gascón irá ao Oscar 2025, segundo a revista "Variety" - Reprodução/Divulgação
Rafaela Modé, psicóloga trans que atua com psicoterapia afirmativa para a população LGBTQIAP+, ainda compara ‘Emilia Pérez’, em que a protagonista era chefe de um cartel de drogas antes da transição, com o filme ‘Um Dia de Cão’ de 1975. Na trama, inspirada em eventos reais, um homem assalta um banco para pagar a cirurgia de redesignação sexual de sua namorada. Para Rafaela, há uma problemática da mídia ao focar em histórias que criminalizam pessoas trans, reforçando estereótipos prejudiciais à comunidade.
Nas redes sociais, ativistas e especialistas criticam a narrativa da transição da protagonista representada de maneira estereotipada. Uma das cenas mais polêmicas é marcada pela música “La Vaginoplastia” que reforça a noção equivocada de que a cirurgia de adequação sexual é o passo que valida a identidade. Além disso, a cena trata a chamada "passabilidade" como um fator determinante de pertencimento, perpetuando desinformação e exclusão, especialmente para pessoas trans de baixa renda.
Bianca Fiuza, mulher trans e ativista, destaca o impacto psicológico dessa abordagem, alertando para os riscos de atrelar a identidade exclusivamente a modificações corporais. “O impacto é a disforia em maior parte. Eu não acho que cirurgias criam uma pessoa trans, pois é algo que precisa ser de dentro para fora e acho horrível criar essa ‘obrigação’.”
A psicóloga Rafaela Modé completa que a cirurgia não é necessariamente uma vontade de todos, e que, apesar de sua importância, não é um ponto único. “Não é só isso que a gente deseja, a gente deseja muito mais coisas do mundo, que envolve sermos respeitadas, amadas pela família, pelos amigos, ter suporte do Estado, ter um emprego digno, poder crescer profissionalmente e ter dinheiro de forma digna. É isso que as pessoas trans sonham.”
Uma informação importante é que não há registros de pessoas trans que trabalharam na produção do musical. A única pessoa trans envolvida no projeto seria a protagonista Karla Sofía Gascón, um impedimento à representatividade real. “A importância é transmitir realmente o que de fato acontece, o que de fato vivemos estando nesse corpo trans. É muito fácil eu te explicar como é e você transcrever isso. Mas o que seria mais válido, sua vivência cis ou a vivência trans? Creio que nós mesmas deveríamos ser nossas vozes”, afirma Bianca.
Outro ponto muito criticado no longa é a falta de aprofundamento nas questões da transgeneridade. O filme trata mais sobre procedimentos estéticos do que a própria identificação de Emilia como mulher. Rafaela explica que a ciência acredita que há uma questão de descarga hormonal durante a gestação, que faz com que o cérebro de uma pessoa trans seja um pouco diferente de uma cisgênero. "A gente tem relatos dentro da psicologia e psiquiatria de crianças com 2, 3 anos que já se identificam com o gênero oposto ao que foi colocado quando nasceram".
Ela também deixa claro que não há interferência do meio. “Eu, por exemplo, tenho memórias com 4, 5 ou 6 anos de me sentir uma menina, mas ainda era algo um tanto quanto nebuloso. E eu fugi disso por muito tempo, fui reprimida muitas vezes e eu não tinha sido abusada, violentada ou qualquer coisa do tipo, meus pais me amavam. Simplesmente, eu sou Rafaela e sempre fui só as pessoas que não sabiam.”
A necessidade de representações trans mais autênticas no cinema é urgente. Com a crescente visibilidade do assunto, a expectativa é que as portas, não só do Oscar, mas do mundo midiático, permaneçam abertas à comunidade e que entendam a importância de tratar a representatividade com seriedade. Além disso, que Karla Sofía Gascón seja a primeira de muitas mulheres trans a serem indicadas.
Confira o trailer completo do filme 'Emilia Pérez', disponível nos cinemas:
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